Condenação permanece restrita à esfera administrativa, revelam pesquisadores
da FGV
A punição ao uso indevido de informação privilegiada no mercado de capitais
(insider trading) permanece restrita à esfera administrativa e não chega
ao Judiciário por meio de ações penais. No livro Insider trading: normas,
instituições e mecanismos de combate no Brasil, professores do Núcleo
de Estudos em Mercados e Investimentos da FGV Direito-SP demonstram que
apenas quatro de 50 casos julgados pela Comissão de Valores Mobiliários
entre 2002 e 2015 foram levados à esfera criminal - ou 8% do total de infrações.
Além disso, diferentes critérios de análise servem de base para as condenações
pela CVM e pela Justiça Federal, na área criminal. Essa discrepância nas
punições do mesmo ilícito foi um dos pontos revelados pela pesquisa de Viviane
Muller Prado, coordenadora do Núcleo de Estudos em Mercados e Investimentos
da FGV, Nora Matilde Rachman e Renato Vilela, advogados e especialistas
na área.
O livro sobre insider trading é fruto de um estudo iniciado em 2009,
quando da primeira condenação criminal por uso de informação privilegiada
no Brasil, no caso Sadia-Perdigão.
Em 2011, o juiz Marcelo Costenaro Cavali, à época substituto na 6ª Vara
Federal Criminal de São Paulo, condenou o ex-diretor de Finanças e Relações
com Investidores da Sadia Luiz Gonzaga Murat Júnior e o ex-membro do conselho
de administração da Sadia Romano Ancelmo Fontana Filho, a um ano e nove
meses e um ano e cinco meses em regime aberto, respectivamente.
Eles foram responsabilizados pela prática de insider trading durante a oferta
pública de aquisição de ações da Perdigão, em 2006.
A criminalização do uso indevido de informação privilegiada ocorreu em 2001,
na edição do art. 27-D da Lei nº 6.385/1976:
Art. 27-D: Utilizar informação relevante ainda não divulgada ao mercado,
de que tenham conhecimento e da qual deva manter sigilo, capaz de propiciar,
para si ou para outrem, vantagem indevida mediante negociação, em nome próprio
ou de terceiro, com valores mobiliários.
Pena: 1 a 5 anos de reclusão e multa de até 3 vezes o montante da vantagem
ilícita obtida em decorrência do crime.
No período 2002-2015, a CVM julgou 50 processos administrativos sancionadores
de insider. No âmbito penal, por mais que a criminalização da prática tenha
ocorrido em 2001, apenas em 2009 houve a primeira denúncia - do caso Sadia-Perdigão.
Apenas outros três casos foram constatados pela pesquisa da FGV-SP. Em um,
houve suspensão do processo. Os outros dois ainda estão em andamento, sendo
que em um deles o empresário Eike Batista é réu. O processo está em curso
na Justiça Federal do Rio de Janeiro.
"Se é crime, por que há mais casos na CVM do que no Judiciário? Não deveria
ir tudo para o âmbito penal?", questionou Viviane Muller Prado, em entrevista
ao JOTA. "Apesar da norma criminal ter um âmbito de abrangência mais
restrito, por que alguns casos que envolvem pessoas com dever de sigilo
não são encontrados no Judiciário via criminal?."
Na conclusão da obra, os autores apontam que "precedentes administrativos
e judiciais utilizaram critérios e alcançaram resultados diferentes em função
justamente dos instrumentos, mecanismos, estratégias jurídicas ou proativismo
das instituições ao combater o ilícito".
Além disso, segundo eles, "não há homogeneidade na tomada de decisão nem
por parte de quem propõe medidas administrativas e judiciais e nem por parte
de quem julga".
O quadro poderia ser pior. Em 4 de março de 2008, um ano antes da primeira
denúncia por insider trading, o colegiado da CVM assinou Termo de Cooperação
Técnica (TCT) com o Ministério Público Federal. Em 2013, o convênio
foi prorrogado por 5 anos, até 2018. As quatro denúncias ocorreram após
o TCT.
CRSFN
Além da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), os autores também detalharam
os casos de uso indevido de informação privilegiada que são revisados na
segunda instância da esfera administrativa, no Conselho de Recursos do Sistema
Financeiro Nacional (CRSFN), conhecido como "Conselhinho do BC".
De 2003 a 2015, foram analisados 26 casos no CRSFN, sendo que desses, 11
foram recursos de ofício - originando-se de casos nos quais houve absolvição
pela CVM.
Do total, em 19 casos o órgão Conselhinho manteve a decisão da CVM. Em quatro
processos, a decisão foi totalmente reformada. Em três, houve reforma parcial.
"O levantamento das decisões do CRSFN é fundamental para compreender, até
a última instância [administrativa], como tem sido a trajetória de aplicação
de penalidades para o uso de informações privilegiadas no mercado brasileiro.
Afinal, o enforcement efetivo pode ter - e tem - um papel relevante de elidir
o cometimento de ilícitos", escrevem os autores.
A obra
Em 102 páginas, o livro analisa todo o contexto punitivo da prática de insider
trading no Brasil. É dividido em três fases.
Na primeira, os autores analisam a era 1965-1976, mercada por "pouca regulamentação
e muitas possibilidades de manipulação".
Posteriormente, o período entre 1976-2001 é detalhado. Justamente nessa
época os primeiros casos começaram a aparecer, com a criação da CVM e a
participação do Poder Judiciário para fins de ressarcimento. Por último,
os autores analisam 2001, ano da criminalização da prática, até os dias
atuais.
"O trabalho busca registrar um momento histórico, instigar novas reflexões
e apontar conexões que ajudem a determinar trajetórias e estratégias a serem
seguidas pelas instituições envolvidas com o enforcement de regras de proibição
do uso de informações privilegiadas", apontam os autores na conclusão da
obra. Além do panorama sobre a punição administrativa e judicial ao insider
trading, os autores detalham o uso de Termos de Compromisso (TC) pela CVM
para fins de settlement dos casos. Quando um TC é firmado pelo investigado
e a CVM, o processo é suspenso.
"Como em apenas 3% dos casos o dinheiro das multas aplicadas pela CVM é
pago, identificamos que os termos de compromisso são mais efetivos, pois
são pagos", disse Renato Vilela, um dos autores do livro.
GUILHERME PIMENTA
27/03/2017